quarta-feira, 30 de julho de 2008

AS QUATRO APLICAÇÕES DA PALAVRA PORQUE

POR QUE - PORQUE - POR QUÊ - PORQUÊ

Há quatro maneiras de se escrever o porquê: porquê, porque, por que e por quê. Vejamo-las:
Porquê
É um substantivo, por isso somente poderá ser utilizado, quando for precedido de artigo (o, os),pronome adjetivo (meu(s), este(s), esse(s), aquele(s), quantos(s)...) ou numeral (um, dois, três,quatro)
Ex.
• Ninguém entende o porquê de tanta confusão.• Este porquê é um substantivo.• Quantos porquês existem na Língua Portuguesa?• Existem quatro porquês.

Por quê
Sempre que a palavra que estiver em final de frase, deverá receber acento, não importando qual seja o elemento que surja antes dela.
Ex.
• Ela não me ligou e nem disse por quê.• Você está rindo de quê?• Você veio aqui para quê?

Por que
Usa-se por que, quando houver a junção da preposição por com o pronome interrogativo que ou com o pronome relativo que. Para facilitar, dizemos que se pode substituí- lo por por qual razão, pelo qual, pela qual, pelos quais, pelas quais, por qual.
Ex.
• Por que não me disse a verdade? = por qual razão• Gostaria de saber por que não me disse a verdade. = por qual razão• As causas por que discuti com ele são particulares. = pelas quais• Ester é a mulher por que vivo. = pela qual

Porque
É uma conjunção subordinativa causal ou conjunção subordinativa final ou conjunçãocoordenativa explicativa, portanto estará ligando duas orações, indicando causa, explicação oufinalidade. Para facilitar, dizemos que se pode substituí-lo por já que, pois ou a fim de que.
Ex.
• Não saí de casa, porque estava doente. = já que• É uma conjunção, porque liga duas orações. = pois• Estudem, porque aprendam. = a fim de que

http://www.algosobre.com.br/portugues/usos-do-porque.html

terça-feira, 29 de julho de 2008

DICAS ORTOGRÁFICAS

Dicas de português

- Ortografia - DÍLSON CATARINO - especial para o Fovest Online. A palavra Ortografia é formada por "orto", elemento de origem grega, usado como prefixo, com o significado de direito, reto, exato e "grafia", elemento de composição de origem grega com o significado de ação de escrever; ortografia, então, significa ação de escrever direito. É fácil escrever direito? Não!! É, de fato, muito difícil conhecer todas as regras de ortografia a fim de escrever com o mínimo de erros ortográficos. Hoje tentaremos facilitar um pouco mais essa matéria. Abaixo seguem algumas frases com as respectivas regras sobre o uso de ç, s, ss, z, x... Vamos a elas:

01) Uma das intenções da casa de detenção é levar o que cometeu graves infrações a alcançar a introspecção, por intermédio da reeducação.

a) Usa-se ç em palavras derivadas de vocábulos terminados em TO:
intento = intenção
canto = canção
exceto = exceção
junto = junção

b) Usa-se ç em palavras terminadas em TENÇÃO referentes a verbos derivados de TER:
deter = detenção
reter = retenção
conter = contenção
manter = manutenção

c) Usa-se ç em palavras derivadas de vocábulos terminados em TOR:
infrator = infração
trator = tração
redator = redação
setor = seção

d) Usa-se ç em palavras derivadas de vocábulos terminados em TIVO:
introspectivo = introspecção
relativo = relação
ativo = açãoi
ntuitivo – intuição

e) Usa-se ç em palavras derivadas de verbos dos quais se retira a desinência R:
reeducar = reeducação
importar = importação
repartir = repartição
fundir = fundição

f) Usa-se ç após ditongo quando houver som de s:
eleição
traição

http://www1.folha.uol.com.br/folha/fovest/ortografia.shtml

O BARRIL DE AMONTILADO - EDGAR ALLAN POE


O BARRIL DE AMONTILADO
Edgar Allan Poe

Suportei o melhor que pude as mil e uma injúrias de Fortunato; mas quando começou a entrar pelo insulto, jurei vingança.Vós, que tão bem conheceis a natureza da minha índole, não ireis supor que me limitei a ameaçar. Acabaria por vingar-me; isto era ponto definitivamente assente, e a própria determinação com que o decidi afastava toda e qualquer ideia de risco. Devia não só castigar, mas castigar ficando impune. Um agravo não é vingado quando a vingança surpreende o vingador. E fica igualmente por vingar quando o vingador não consegue fazer-se reconhecer como tal àquele que o ofendeu.
Deve compreender-se que nem por palavras, nem por actos, dei motivos a Fortunato para duvidar da minha afeição.Continuei, como era meu desejo, a rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da ideia da sua imolação.
Tinha um ponto fraco, este Fortunato sendo embora, sob outros aspectos, homem digno de respeito e mesmo de receio. Orgulhava-se da sua qualidade de entendido em vinhos. Poucos italianos possuem o verdadeiro espírito de virtuosidade. Na sua maior parte, o seu entusiasmo é adaptado às circunstâncias de tempo e de oportunidade para ludibriar milionários britânicos e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, à semelhança dos seus concidadãos, era um charlatão, mas na questão de vinhos era entendido. Neste aspecto eu não diferia substancialmente dele: eu próprio era entendido em vinhos de reserva italianos, e comprava-os em grandes quantidades sempre que podia.
Foi ao escurecer, numa tarde de grande loucura da quadra carnavalesca, que encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessivo calor, pois bebera de mais. Trajava de bufão; um fato justo e parcialmente às tiras, levando na cabeça um barrete cónico com guizos. Fiquei tão contente de o ver que julguei que nunca mais parava de lhe apertar a mão.
- Meu caro Fortunato - disse eu -, ainda bem que o encontro. Você tem hoje uma aparência notável! Saiba que recebi um barril de um vinho que passa por ser amontillado; mas tenho cá as minhas dúvidas.- O quê? - disse ele - Amontilladdo? Um barril? Impossível! E em pleno Carnaval!
- Tenho as minhas dúvidas - respondi -, e estupidamente paguei o verdadeiro preço do amontillado sem ter consultado o meu amigo. Não o consegui encontrar e tinha receio de perder o negócio!
- Amontillado!
- Tenho as minhas dúvidas - insisti.
- Amontillado!
- E tenho de as resolver.
- Amontillado!
- Como vejo que está ocupado, vou procurar Luchesi. Se existe alguém com espírito crítico, é ele. Ele me dirá.
- Luchesi não distingue amontillado de xerez.
- No entanto, há muito idiota que acha que o seu gosto desafia o do meu amigo.
- Venha, vamos lá.
- Aonde?
- À sua cave.
- Não, meu amigo, não exigiria tanto da sua bondade. Vejo que tem compromissos. Luchesi...
- Não tenho compromisso nenhum, vamos.
- Não, meu amigo. Não será o compromisso, mas aquele frio terrível que bem sei que o aflige. A cave é insuportavelmente húmida. Está coberta de salitre.
- Mesmo assim, vamos lá. O frio não é nada. Amontillado! Você foi ludibriado. E quanto a Luchesi, não distingue xerez de amontillado.
Assim falando, Fortunato pegou-me pelo braço. Depois de pôr uma máscara de seda preta e de envergar um roquelaire cingido ao corpo, tive que suportar-lhe a pressa que levava a caminho do meu palacete.
Não havia criados em casa; tinham desaparecido todos para festejar aquela quadra. Eu tinha-lhes dito que não voltaria senão de manhã e dera-lhes ordens explícitas para se não afastarem de casa. Ordens essas que foram o suficiente, disso estava eu certo, para assegurar o rápido desaparecimento de todos eles, mal voltara costas.
Retirei das arandelas dois archotes e, dando um a Fortunato, conduzi-o através de diversos compartimentos até à entrada das caves. Desci uma grande escada de caracol e pedi-lhe que se acautelasse enquanto me seguia. Quando chegámos ao fim da descida encontrávamo-nos ambos sobre o chão húmido das catacumbas dos Montresors. O andar do meu amigo era irregular e os guizos da capa tilintavam quando se movia.
- O barril? - perguntou.
- Está lá mais para diante - disse eu -, mas veja a teia branca de aranha que cintila nas paredes da cave.
Voltou-se para mim e poisou nos meus olhos duas órbitas enevoadas pelos fumos da intoxicação.
- Salitre? - perguntou por fim.
- Sim - respondi. - Há quanto tempo tem essa tosse?
- Hâg!, hâg!, hâg! Hâg!, hâg!, hâg!
O meu amigo ficou sem poder responder-me durante bastante tempo.
- Não é nada - acabou por dizer.
- Venha - disse-lhe com decisão. - Retrocedamos, a sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos. Você é um homem cuja falta se sentiria. Quanto a mim, não importa. Retrocedamos. Ainda é capaz de adoecer e não quero assumir tal responsabilidade. Além disso, há Luchesi...
- Basta! - replicou. - A tosse não é nada, não me vai matar. Não vou morrer por causa da tosse.
- Pois decerto que não, pois decerto - respondi -; não é minha intenção alarmá-lo desnecessariamente, mas deve usar de cautela. Um gole deste médoc defender-nos-á da humidade.
Quebrei o gargalo de uma garrafa que retirei de uma longa fila de muitas outras iguais que jaziam no bolor.
- Beba - disse, apresentando-lhe o vinho.
Levou-o aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e abanou a cabeça significativamente, enquanto os guizos tilintavam.
- Bebo - disse - aos mortos que repousam à nossa volta.
- E eu para que você viva muito.
Novamente me tomou pelo braço e prosseguimos.
- Estas catacumbas são enormes - disse ele.
- Os Montresors - respondi - constituíam uma família grande e numerosa.
- Não me lembro do vosso brasão.
- Um enorme pé humano, de ouro, em campo azul; o pé esmaga uma serpente rampante cujas presas estão ferradas no calcanhar.
- E a divisa?
- Nemo me impune lacessit(1)
- Óptimo! - disse ele.
O vinho brilhava no seu olhar e os guizos tilintavam. A minha própria disposição melhorara com o médoc. Tinha passado por entre paredes de ossos empilhados, à mistura com barris e pipos, nos mais recônditos escaninhos das catacumbas. Parei novamente e desta vez fiz questão de segurar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.
- Salitre! - disse eu -, veja como aumenta. Parece musgo nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de humidade escorrem por entre os ossos. Venha, vamo-nos embora que já é muito tarde. A sua tosse...
- Não faz mal - retorquiu -, continuaremos. Antes, porém, mais um trago de rnédoc.
Abri e passei-lhe uma garrafa de De Grâve. Despejou-a de um trago. Os olhos brilharam-lhe com um fulgor feroz. Riu e atirou a garrafa ao ar, com uns gestos que não entendi. Olhei-o surpreso. Repetiu o movimento grotesco.
- Não compreende?
- Não, não compreendo - respondi.
- Então não pertence à irmandade.
- Como?
- Quero eu dizer que não pertence à Maçonaria.
- Sim, sim - disse -, sim, pertenço.
- Você? Impossível! Um mação?
- Sim, um mação - respondi.
- Um sinal - disse ele.
- Aqui o tem - retorqui, mostrando uma colher de pedreiro que retirei das dobras do meu roquelaire.
- Está a brincar - exclamou, recuando alguns passos. - Mas vamos lá ao amontillado.
- Assim seja - disse eu, tornando a colocar a ferramenta sob a capa e tornando a oferecer-lhe o meu braço.
Apoiou-se nele pesadamente. Continuámos o nosso caminho em procura do amontillado. Passámos por uma série de arcos baixos, descemos, atravessámos outros, descemos novamente e chegámos a uma profunda cripta na qual a rarefacção do ar fazia com que os archotes reluzissem em vez de arderem em chama.
No ponto mais afastado da cripta havia uma outra cripta menos espaçosa. As paredes tinham sido forradas com despojos humanos, empilhados até à abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três das paredes desta cripta interior estavam ainda ornamentadas desta maneira. Na quarta parede, os ossos tinham sido derrubados e jaziam promiscuamente no solo, formando num ponto um montículo de certo vulto. Nessa parede assim exposta pela remoção dos ossos, percebia-se um recesso ainda mais recôndito, com um metro e vinte centímetros de fundo, noventa centímetros de largo e um metro e oitenta a dois metros e dez de alto. Parecia não ter sido construído com qualquer fim específico, constituindo apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do tecto das catacumbas, e era limitado, ao fundo, por uma das paredes circundantes em granito sólido.
Foi em vão que Fortunato, levantando o seu tíbio archote, tentou sondar a profundidade do recesso. A enfraquecida luz não nos permitia ver-lhe o fim.
- Continue - disse eu -, o amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi...
- É um ignorante - interrompeu o meu amigo, enquanto avançava, vacilante, seguido por mim. Num instante atingira o extremo do nicho, e vendo que não podia continuar por causa da rocha, ficou estupidamente desorientado. Um momento mais e tinha-o agrilhoado ao granito. Havia na parede dois grampos de ferro, distantes um do outro, na horizontal, cerca de sessenta centímetros. De um deles pendia uma pequena corrente e do outro um cadeado. Lançar-lhe a corrente em volta da cintura e fechá-la foi obra de poucos segundos. Ficara demasiado surpreendido para oferecer resistência. Retirei a chave e recuei.
- Passe a mão pela parede - disse eu. - Não deixará de sentir o salitre. Na realidade está muito húmido. Mais uma vez lhe suplico que nos retiremos. Não lhe convém? Nesse caso, tenho realmente de o deixar. Mas, primeiro, quero prestar-lhe todas as pequenas atenções ao meu alcance.
- O amontillado! - berrou o meu amigo, que se não recompusera ainda do espanto em que se encontrava.
- É verdade - respondi. - O amontillado.
Ao dizer isto, pus-me a procurar com todo o afã por entre as pilhas de ossos de que já falei. Atirando com eles para o lado, pus a descoberto uma quantidade de pedras e argamassa. Com estes materiais e com a ajuda da minha trolha, comecei a entaipar com todo o vigor a entrada do nicho.
Mal tinha colocado a primeira fiada de pedras quando descobri que a embriaguez de Fortunato tinha em grande parte desaparecido. A este respeito, o primeiro indício foi-me dado por um longo gemido vindo da profundidade do recesso. Não era o gemido de um ébrio. Sucedeu-se um prolongado e obstinado silêncio. Pus a segunda fiada de pedras, a terceira e a quarta. Em seguida ouvi as vibrações furiosas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para me ser possível ouvi-lo com maior satisfação, suspendi a minha tarefa e sentei-me no montículo de ossos. Quando finalmente cessou o tilintar, retomei a trolha e completei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima fiadas. A parede estava agora quase ao nível do meu peito. Parei novamente e, elevando o archote acima do parapeito, fiz incidir alguns raios de luz sobre a figura que lá estava dentro.
Uma sucessão de gritos altos e agudos, irrompendo de súbito da garganta da figura agrilhoada, quase me atirou violentamente para trás. Por um breve momento hesitei, tremi. Desembainhei o florete e com ele comecei a tactear o recesso, mas bastou pensar um momento para voltar a sentir-me seguro. Coloquei a mão sobre a sólida construção das catacumbas e fiquei satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede. Respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os como um eco, juntei-me a eles, ultrapassei-os em volume e força. Depois disto, o outro sossegou.
Era agora meia-noite e a minha tarefa aproximava-se do fim. Completara já a oitava, a nona e a décima fiadas. Tinha acabado uma porção da décima primeira e última; faltava apenas colocar e fixar uma pequena pedra. Lutava com o seu peso; coloquei-a parcialmente na posição que lhe cabia. Soltou-se então do nicho um riso abafado que me arrepiou os cabelos. Seguiu-se uma voz triste que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. Dizia aquela voz:
- Ah!, ah!, ah!, eh!, eh!, boa piada, de facto, excelente gracejo. Havemos de rir bastante acerca disto, lá no palácio, eh!, eh!, eh!, acerca do nosso vinho, eh!, eh!, eh!
- O amontillado? - disse eu.
- Eh!, eh!, eh!, eh!, eh!, eh!, sim, o amontillado. Mas não estará a fazer-se tarde? Não estarão à nossa espera no palácio lady Fortunato e os convidados? Vamo-nos embora.
- Sim - disse eu -, vamo-nos.
- Pelo amor de Deus, Montresor!
- Sim - disse eu -, pelo amor de Deus!
Em vão esperei uma resposta a estas palavras. Comecei a ficar impaciente. Chamei em voz alta:
- Fortunato!
Não obtive resposta. Chamei novamente:
- Fortunato!
Continuei sem resposta. Meti um archote pela pequena abertura e deixei-o cair lá dentro. Em resposta ouvi apenas um tilintar de guizos. Senti o coração oprimido, dada a forte umidade das catacumbas. Apressei-me a pôr fim à minha tarefa. Forcei a última pedra no buraco, e fixei-a com a argamassa. De encontro a esta nova parede tornei a colocar a velha muralha de ossos. Durante meio século nenhum mortal os perturbou. In pace requiescat!(2)
Notas
1. Ninguém me fere impunemente.
2. Descanse em paz!

LUZ DE LANTERNA, SOPRO DE VENTO - MARINA COLASANTI

LUZ DE LANTERNA, SOPRO DE VENTO
Marina Colasanti

Tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da sua ausência a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a do lado de fora da casa. "Para trazê-lo de volta," murmurou. E foi dormir.
Mas, ao abrir a porta na manhã seguinte, deparou-se com a lanterna apagada. "Foi o vento da madrugada," pensou olhando para o alto como se pudesse vê-lo soprar.
À noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que, a distância deveria indicar ao seu homem o caminho de casa.
Ventou de madrugada. Mas era tão tarde e ela estava tão cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das árvores, nem o gemido das frestas, nem o ranger das argolas da lanterna. E de manhã surpreendeu-se ao encontrar a luz apagada.
Naquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se estudando o céu límpido, as claras estrelas. "Na certa não ventará," disse em voz alta, quase dando uma ordem. E encostou a chama do fósforo no pavio.
Se ventou ou não, ela não saberia dizer. Mas antes que o dia raiasse não havia mais nenhuma luz, a casa desaparecia nas trevas.
Assim foi durante muitos e muitos dias, a mulher sem nunca desistir acendendo a lanterna que o vento, com igual constância apagava.
Talvez meses tivessem passado quando num entardecer, ao acender a lanterna, a mulher viu ao longe recortada contra a luz que lanhava em sangue o horizonte, a silhueta escura de um homem a cavalo. Um homem a cavalo que galopava na sua direção.
Aos poucos, apertando os olhos para ver melhor, destinguiu a lança erguida ao lado da sela, os duros contornos da couraça. Era um soldado que vinha. Seu coração hesitou entre o medo e a esperança. O fôlego se reteve por instantes entre lábios abertos. E já podia ouvir os cascos batendo sobre a terra, quando começou a sorrir. Era seu marido que vinha.
Apeou o marido. Mas só com um braço rodeou-lhe os ombros. A outra mão pousou na empunhadura da espada. Nem fez menção de encaminhar-se para a casa.
Que não se iludisse. A guerra não havia acabado. Sequer havia acabado a batalha que deixara pela manhã. Coberto de poeira e sangue, ainda assim não havia vindo para ficar. "Vim porque a luz que você acende à noite não me deixa dormir," disse-lhe quase ríspido. "Brilha por trás das minhas pálpebras fechadas, como se me chamasse. "Só de madrugada depois que o vento sopra posso adormecer."
A mulher nada disse. Nada pediu. Encostou a mão no peito do marido, mas o coração dele parecia distante, protegido pelo couro da couraça.
"Deixe-me fazer o que tem de ser feito, mulher," disse sem beijá-la. De um sopro apagou a lanterna. Montou a cavalo, partiu. Adensavam-se as sombras, e ela não pode sequer vê-lo afastar-se contra o céu.
A partir daquela noite, a mulher não acendeu mais nenhuma luz. Nem mesmo a vela dentro de casa, não fosse a chama acender-se por trás das pálbebras do marido.
No escuro, as noites se consumiam rápidas. E com elas carregavam os dias, que a mulher nem contava. Sem saber ao certo quanto tempo havia passado, ela sabia porém que era tanto.
E, passado , num final de tarde em que a soleira da porta despedia-se da última luz no horizonte, viu desenhar-se lá longe a silhueta de um homem. Um homem à pé que caminhava na sua direção. Protegeu os olhos com a mão para ver melhor e aos poucos, porque o homem avançava devagar, começou a distinguir a cabeça baixa, o contorno dos ombros cansados. Contorno doce, sem couraça, retendo o sorriso nos lábios- tantos homens haviam passado sem que nenhum fosse o que ela esperava. Ainda não podia ver-lhe o rosto, oculto entre a barba e o chapéu, quando deu o primeiro passo e correu ao seu encontro, liberando o coração. Era seu marido que voltava da guerra.
Não precisou perguntar-lhe se havia vindo para ficar. Caminharam até a casa. Já iam entrar. Quando ele se reteve. Sem pressa voltou-se, e, embora a noite ainda não tivesse chegado, acendeu a lanterna. Só entrou com a mulher. E fechou a porta.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

FELICIDADE CLANDESTINA - CLARICE LISPECTOR

FELICIDADE CLANDESTINA
Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

http://www.beatrix.pro.br/literatura/feliclandconto.htm

O GATO PRETO - EDGAR ALLAN POE

O GATO PRETO
Edgar Allan Poe

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e instruíram.
No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror _ mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum _ uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto _ assim se chamava o gato _ era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento _ enrubesço ao confessá-lo _ sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim _ que outro mal pode se comparar ao álcool? _ e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão _ dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado _ um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo _ coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme _ tão grande quanto Pluto _ e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo _ e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse _ detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê _ seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente _ , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo _ apresso-me a confessá-lo _ , pelo pavor extremo que o animal me despertava. Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar _ sim, mesmo nesta cela de criminoso _ , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível _ que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa _, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável _ um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso _ encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim _ pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros _ os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade _ e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.

Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite _ e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia _ e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.

_ Senhores _ disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada _ , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes _ os senhores já se vão? _ , estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

http://www.beatrix.pro.br/literatura/o_gato_preto.html

VENHA VER O PÔR DO SOL - LYGIA FAGUNDES TELES

VENHA VER O PÔR DO SOL
Lygia Fagundes Teles

ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.


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MISSA DO GALO - MACHADO DE ASSIS



MISSA DO GALO
Machado de Assis

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.
- Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
- Ainda não foi? Perguntou ela.
- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
- Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
- Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
- Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
- Justamente: é muito bonito.
- Gosta de romances?
- Gosto.
- Já leu a Moreninha?
- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
- Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
E logo alto:
- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
- Já tenho feito isso.
- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
- Que velha o quê, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
- É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
- Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
- Eu também sou assim.
- O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
- Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.
- Foi o que lhe aconteceu hoje.
- Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
- Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
- São bonitos, disse eu.
- Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"
- Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
- Já serão horas? perguntei.
- Naturalmente.
- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

sábado, 26 de julho de 2008

PREMIAÇÃO POR UM TRABALHO BEM FEITO

A prefeitura de Pedro Afonso premiou no 30 de junho os 10 melhores professores do município. Professores esses que foram eleitos através de avaliações feitas pelos alunos, coordenação, supervisão, secretaria e direção de cada escola participante, nessa ocasião tive a honra de ser premiado com o segundo lugar.
Por esse motivo, venho aqui expressar a minha alegria e satisfação de ter chegado onde cheguei, e com certeza farei tudo para conseguir novamente, pois para o tal, apenas tenho que fazer o meu serviço bem feito.
A Escola Municipal Sousa Aguiar também foi premiada como a escola que melhor contou a história dos sete ultimos prefeitos de nosa cidade.
Abaixo seguem algumas fotos da festa de premiaçaõ.

HISTÓRIA DA MÚSICA GÓSPEL NACIONAL

A história da música góspel
Por Pepe em FGospelebruary 2007 na categoria Música


A música gospel (do inglês “gospel”, ou seja, “evangelho”) é um gênero musical de origem afro-americana, nascido nas fazendas de escravos no sul dos Estados Unidos. Os escravos cantavam músicas religiosas com mensagens escondidas em suas letras. As mensagens poderiam conter informações sobre terrenos, quais estradas e rios evitar e números de homens patrulhando tais estradas e rios. Essas canções eram cantadas pelos escravos presos, durante a noite, quando se sabia que havia escravos em fuga a fim de orientá-los rumo ao norte livre. Esse costume continuou quando os escravos foram libertados invadindo igrejas e templos afro-americanos por todo os Estados Unidos.

O gospel em sua forma original era geralmente interpretada por um solista, acompanhado de um coro e um pequeno conjunto instrumental. Grandes intérpretes da música norte-americana começaram assim, como cantores de gospel nas igrejas. É o caso de Mahalia Jackson, Bessie Smith e Aretha Franklin, além de Ray Charles. O gospel ajudou a moldar toda a música negra dos Estados Unidos neste século: ragtime, blues e jazz. E foi também influenciado por ela, assumindo formas às vezes surpreendentes em se tratando de música religiosa. É o caso dos quartetos gospel, surgidos após a Segunda Guerra Mundial, com suas música gritada, sua dança cheia de sacolejos e roupas extravagantes. Nesta fonte foi “beber” o rock dos anos 50, desde Bill Haley e seus cometas passando por Jerry Lee Lewis e principalmente Elvis Presley.

Atualmente nos Estados Unidos e em outros países, o Gospel está incluído como uma categoria tradicional de música cristã.

Comercialmente e na forma que tem atualmente, a música cristã estourou nos Estados Unidos a partir dos anos 70. O rock, em mais uma volta da história, passa a ser o carro chefe da música cristã. Todavia, outros ritmos como o funk e o reggae também são por ela adotados. O que a define não é o gênero musical, mas a mensagem: justiça social, Cristo, ecologia, repúdio às drogas, harmonia entre os homens. Bandas como Stryper (heavy metal), de Los Angeles, tocam música cristã, ou Gospel. Grandes espetáculos se organizam por todo o país e cada vez mais emissoras de rádio criam programações gospel. Hoje o prêmio Grammy, considerado o Oscar da música, inclui a categoria gospel, além da música cristã premiar seus talentos com o Prêmio Dove Awards.

Na música cristã internacional destacam-se atualmente Michael W. Smith, os grupos Vineyard, Hillsong Music Australia, Kirk Franklin; e nos anos 90, os ministérios Hosanna!, Maranatha; as bandas Petra, Guardian, Bride; as cantoras Amy Grant, Crystal Lewis, entre outros.

Ainda na vertente metal, surguram bandas como: Tourniquet e Mortification que elevaram o “metal gospel” à categoria, segundo seus fãs, de grande qualidade.

O cenário do “rock cristão” teve como grande nome e destaque a banda Petra, dos Estados Unidos, umas das pioneiras do estilo em todo o mundo.


http://www.dotgospel.com/blog/a-historia-da-musica-gospel/

HISTÓRIA DA MÚSICA SERTANEJA BRASILEIRA

A MÚSICA SERTANEJA


A música Sertaneja surgiu ainda na década de 10.O pioneiro desse movimento foi o jornalista e escritor Cornélio Pires que costumava trazer para os grandes centros os costumes dos caipiras. Desde encenações teatrais à cantores de estilos como o Catira, etc...Em 1912, Cornélio lançou um livro chamado Musa Caipira, que trazia versos típicos.No início da década de 20 uma instituição liderada por Mario de Andrade promoveu uma semana para divulgação da arte brasileira, onde pela primeira vez foi montado um grupo intitulado de sertanejo, com instrumentos simples como a viola caipira, misturando alguns ritmos como o Catira, Moda de Viola, Lundu, Cururu, etc...Valorizando ainda mais o trabalho de Cornélio Pires.O primeiro registro de um grupo de música Sertaneja foi datado de 1924 (A Turma Caipira de Cornélio Pires), formada por violeiros como Caçula e Sorocabinha, e alguns outros tão importantes da época.Agora o primeiro registro fonográfico do estilo, deu-se em 1929 quando Cornélio Pires desacreditado pela gravadora Columbia resolveu bancar do seu próprio bolso a gravação e edição do primeiro álbum, que em poucos dias de lançamento esgotou-se nas lojas.Começava daí o interesse pelo estilo por parte das gravadoras.Assim como na música Country americana, uma gravadora que se interessou pela geração desse trabalho foi a RCA-Victor que convidou o violeiro Mandy para montar um outro grupo intitulado Turma Caipira da Victor, nascendo uma concorrência sadia entre os dois grupos e as duas gravadoras.Já com inúmeros adeptos e crescendo a cada ano mais e mais, no final da década de 20 começou a surgir as primeiras duplas como Mariano e Caçula, Zico e Ferrinho, Sorocabinha e Mandy, na maioria violeiros das turmas do Cornélio e da Victor.Na década de 30 surge, sem dúvida, uma das mais importantes duplas sertanejas de todos os tempos (Alvarenga e Ranchinho) que além de tudo eram muito alegres e engraçados. Uma curiosidade sobre a dupla é que de tanta "descontração" foram presos pelo governo de Getúlio Vargas.E muitas outras duplas formaram-se, algumas trazendo a tristeza do sertanejo no peito, outras mostrando o lado alegre do caipira, etc...No ano de 1939 a dupla Raul Torres e Serrinha inovaram introduzindo à música sertaneja o Violão.Mais para frente Raul Torres e Serrinha inovaram novamente criando o primeiro programa de rádio dedicado a música sertaneja, transmitido pela Record com a participação de José Rielli, o programa chamava-se Três Batutas do Sertão.Surgiram vários nomes importantes da música sertaneja, e o movimento que até então era apenas do eixo São Paulo-Minas Gerais, passou a se expandir por todo o país, nascendo influências regionais como as do Rio Grande do Sul, Goiás, Pernambuco estado de Raul Torres, Mato Grosso, etc...Hoje em dia para qualquer lado que se olhe existe um representante da música sertaneja, que deixou de ser um tributo aos sentimentos do homem do campo para se tornar sinônimo de cifras e grande espetáculos, onde a última coisa que se ouve é o dedilhar de uma viola tocada pelas mãos calejadas da enxada e o puro sentimento ingênuo dos homens e mulheres dessas regiões.

http://sertanejo.musicblog.com.br/8281/Historia-da-musica-Sertaneja/

HISTÓRIA DO ROCK NACIONAL

Se o Rock Brasil passava uma imagem romântica e idealista, tudo iria mudar a partir de janeiro de 1985, graças a um acontecimento crucial: o Rock In Rio, 10 dias de som e luz num terreno de 300 mil metros quadrados na Barra da Tijuca, no que acabou por ser o maior concerto de rock de todos os tempos, com um público estimado em um milhão e meio de pessoas. Ao lado de 14 dos mais importantes astros internacionais da época (Queen, Iron Maiden, Rod Stewart, Ozzy Osbourne, AC/DC, Yes, Scorpions, entre outros), estavam valorosos veteranos da MPB e a nova rapaziada: Blitz, Barão Vermelho, Lulu Santos, Paralamas do Sucesso e Kid Abelha.

No maior palco de suas iniciantes carreiras, as bandas não titubearam. O resultado foi que o rock entrou na ordem do dia (para a mídia e as gravadoras), o Brasil na rota das turnês das bandas internacionais e os nossos roqueiros tiveram noções de profissionalismo e de espetáculo muito úteis para quando fossem percorrer o país com seus shows. Auto-estima em alta, a juventude que viu as novas bandas brasileiras fazerem bonito ao lado dos ídolos estrangeiros, ainda presenciou, em meio ao festival, a eleição de Tancredo Neves como o primeiro presidente civil no Brasil desde o golpe militar de 1964. Findava uma era.

O Rock Brasil que emergiu naquela ano de 1985 apresentou-se ousado, contestador, multifacetado e geograficamente disperso. De São Paulo vieram dois dos maiores êxitos comerciais do ano. Um deles, o álbum Nós Vamos Invadir Sua Praia, do Ultraje a Rigor, banda que havia causado algum burburinho com a música Inútil, tocada pelos Paralamas no Rock In Rio e citada pelo presidente do PMDB, o Senhor Diretas Ulysses Guimarães. No disco, estavam as músicas Ciúme, Eu Me Amo, Rebelde Sem Causa e Mim Quer Tocar, todas sucessos de rádio. O outro nome foi o RPM, que, embalado pelo estouro da música Louras Geladas, lançou seu LP de estréia Revoluções Por Minuto. Com Louras e as músicas Olhar 43, Rádio Pirata e Revoluções Por Minuto obtendo excelentes taxas de execução nas rádios, a banda liderada pelo vocalista e baixista Paulo Ricardo (o primeiro sex symbol masculino do Rock Brasil dos 80) e orientada pelo empresário Manoel Poladian resolveu partir para um superprodução: o show Rádio Pirata, dirigido por Ney Matogrosso.

Ascensão e queda
Nunca se havia visto algo como aquilo no Brasil: efeitos de raio laser, gelo seco, sofisticado equipamento de som e a explosão de sensualidade de Paulo Ricardo. O show correu o Brasil, aumentando brutalmente a popularidade do grupo, que se viu forçado pela gravadora a embarcar num disco ao vivo, com a versão de London, London (Caetano Veloso) que já começava a ser tocada nas rádios. Lançado em 1986, Rádio Pirata Ao Vivo, um disco do Rock Brasil, tornou-se o recordista de vendas – de qualquer gênero – no Brasil: 2,2 milhões de cópias. Em pouco tempo, vergado pela pressão de ser uma sensação nacional, pelas disputas internas e pelo abuso no consumo de drogas, o RPM ainda gravou mais um LP (RPM, 1987, de vendagem decepcionante em relação ao do disco anterior) e acabou, sem muito barulho, em 1989.

No mesmo mês do Rock In Rio, uma banda de Brasília estaria lançando seu primeiro disco – um disco que marcaria a história do Rock Brasil. Legião Urbana apresentava ao país a poética de Renato Russo (oriundo da banda punk Aborto Elétrico), em letras nas quais a realidade dos "Filhos da Revolução" (termo empregado na música Geração Coca-Cola), estava expressa em seus anseios, medos e reivindicações. Conhecida anteriormente pela música Química (gravada pelos amigos Paralamas em Cinema Mudo), a Legião ganhou o público com aquele disco de músicas cheias de energia roqueira e sentimento à flor da pele, como Será, Ainda É Cedo e Soldados. Era a primeira das bandas de Brasília influenciadas pelo punk rock, que viriam tomar de assalto a mídia: outras como Capital Inicial, Plebe Rude, Finis Africae e Detrito Federal logo chegariam. Também de origem punk e também deslocada do eixo Rio-São Paulo, o Camisa de Vênus, cáustica turma de baianos liderada pelo vocalista Marcelo Nova, apareceria em 1985. Depois de um LP sem grande repercussão nacional, eles conseguiram enfim estourar naquele ano com Eu Não Matei Joana D’Arc, do LP Batalhões de Estranhos. Em pouco tempo, o país conheceria outras músicas suas como Bete Morreu e O Adventista.

Em São Paulo, os ecos do punk seriam responsáveis por uma outra banda de relevância a vir à luz em 1985, com o disco de estréia Mudança de Comportamento: o Ira!, do guitarrista Edgard Scandurra e o vocalista Nasi. Enquanto isso, o underground paulista fervilhava, com bandas que investiram em trabalhos inspirados no pop-rock inglês de vanguarda e podiam ser encontrados mais nas páginas de jornais e revistas que nas rádios: Muzak, Akira S & As Garotas Que Erraram, Chance e Ness (reunidos na coletânea Não São Paulo), Mercenárias e Smack (Edgard Scandurra tocava nas duas), Fellini e Voluntários da Pátria. O selo independente Baratos Afins, de Luiz Calanca, lançava os discos de toda essa rapaziada, antecipando em pelo menos dez anos a realidade dos pequenos selos que ajudaram a fazer do rock alternativo um fenômeno. Em contraponto, o Rio de Janeiro ficava famoso em 1985 por mais um álbum de grande rotação nas rádios, com músicas que remetiam ao rock dos anos 50 e à Jovem Guarda: Sessão da Tarde, de Léo Jaime. O Kid Abelha saíria com seu segundo LP, Educação Sentimental e, no fim do ano, o ex-Barão Vermelho Cazuza, com o seu primeiro álbum solo, Exagerado.

Chegam os gaúchos
Para o Rock Brasil, 1986 foi um ano de consolidação artística e fartura de lançamentos: a explosão de consumo proporcionada pelo Plano Cruzado fez a festa das gravadoras, que começaram a contratar qualquer banda que cheirasse a rock. Uma coletânea – Rock Grande do Sul, só de bandas de Porto Alegre – revelou, com as músicas Sopa de Letrinhas e Segurança, uma banda que daria muito o que falar: os Engenheiros do Hawaii, que no mesmo ano lançariam o seu primeiro LP, ironicamente intitulado Longe Demais das Capitais. Na mesma coletânea estavam os Replicantes, banda de inspiração punk-hardcore, que graças música Surfista Calhorda também ganhou seu LP: O Futuro É Vortex. Também estrearam naquele ano em álbum (ou Mini LP) os cariocas do Biquini Cavadão (Cidades em Torrente), a Plebe Rude (com o demolidor O Concreto Já Rachou), o Capital Inicial (Capital Inicial) e os Inocentes (com Pânico em SP, primeiro disco do punk brasileiro a ser lançado por uma grande gravadora).

Três, porém, seriam os discos do Rock Brasil a arrebatar a atenção de público e crítica por sua força e novidade. Com Selvagem, os Paralamas do Sucesso fizeram uma ambiciosa conexão Brasil-Jamaica-Inglaterra-África via música negra. As músicas Alagados, A Novidade (letra de Gilberto Gil) e Melô do Marinheiro apresentaram uma banda madura e decidida a fazer carreira. Já em Dois, a Legião Urbana revelou-se mais lírica e acústica, em faixas que fizeram a história da banda: Tempo Perdido, Índios, Eduardo e Mônica, Quase Sem Querer e Andrea Doria. Por fim, com Cabeça Dinossauro, os Titãs deram sua guinada punk, num lance que parecia arriscado, mas que lhes garantiu credibilidade roqueira e grande retorno comercial. Músicas como Polícia, Igreja, Bichos Escrotos, Homem Primata e AA UU foram grandes sucessos.

A boa fase do Rock Brasil entraria por 1987, com a explosão de Lobão (no LP Vida Bandida) e mais um punhado de LPs que entrariam para a história do movimento, como A Revolta dos Dândis (a obra-prima dos Engenheiros do Hawaii), Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (Titãs), Que País É Este – 1978/1987 (Legião Urbana) e Sexo! (Ultraje a Rigor). Uma surpresa foi o aparecimento do carioca Fausto Fawcett e seus Robôs Efêmeros com o rap Kátia Flávia (a Godiva do Irajá, da "calcinha exocet"), sucesso nos rádios, que levou à gravação de um álbum naquele mesmo ano.

Outra surpresa foi o selo Plug, da gravadora RCA, que apostou em LPs de novíssimos nomes do Rock Brasil que não estivessem fazendo nada parecido com as outras bandas. Estrearam na etiqueta os cariocas do Picassos Falsos (de Carne e Osso) e Hojerizah (de Pros que Estão em Casa), os gaúchos Defalla e TNT, o paulistano Violeta de Outono, entre outros. Apesar das reconhecidas qualidade e inovação, poucas bandas do Plug passaram do segundo LP. Das raras exceções, temos a banda gaúcha Nenhum de Nós, que virou sensação por causa da música Camila, Camila, e que em 1989 seria responsável por um dos grandes hits do ano: O Astronauta de Mármore, versão de Starman, música de David Bowie.

Tempos difíceis
De 1988 em diante, o Rock Brasil experimenta um refluxo, com uma dificuldade cada vez maior das bandas de recuperar os níveis de vendagem e execução. Discos clássicos continuam a ser lançados, porém: caso de Ideologia, em que Cazuza, já infectado pela Aids, começa a refletir sobre sua própria condição (Ideologia, Boas Novas) e sobre o país (Brasil). Também em 88, aos 16 anos de idade, Ed Motta chegou com pinta de veterano, injetando funk e soul no Rock Brasil, no disco de estréia com a banda Conexão Japeri. A Legião Urbana, que experimentou um sucesso estrondoso aquele ano com a música Faroeste Caboclo, viu o reverso da moeda no dia 18 de junho, em show no Estádio Mané Garrincha, na cidade onde a banda nasceu, Brasília: confusão total, com Renato Russo sendo atacado no palco por um doente mental e a polícia descendo o pau sobre a platéia, que saiu do show (interrompido) fazendo balbúrdia pela cidade. Saldo: 385 feridos, 60 presos e 64 ônibus depredados.

O incidente bateu fundo na Legião. Sem o baixista Negrete, que pediu as contas, a banda finalizou seu quarto e mais bem-sucedido LP: As Quatro Estações, início de uma fase onde se misturam nas letras de Renato a busca da afirmação da homossexualidade e as preocupações religiosas. Pais e Filhos, Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto, Meninos e Meninas e Monte Castelo fizeram deste disco o último grande sucesso de vendagens do Rock Brasil em um bom tempo (e o maior da Legião). No show carioca de As Quatro Estações (que acabou com guerra de areia da platéia), em 7 de julho de 1989, o clima foi de luto: Cazuza (a quem Renato havia dedicado Feedback Song For a Dying Friend) havia morrido. Meses depois, morreria Raul Seixas – pobre, doente e sem reconhecimento. O Rock Brasil encerrava mais uma era.

No começo da década de 90, ao mesmo tempo em que a crise econômica levava Paralamas e Titãs a vendagens de discos decepcionantes, uma banda de Minas Gerais, gestada no circuito subterrâneo do Rock Brasil, tornava-se uma potência mundial do heavy metal (e o nome do mais popular do rock brasileiro no exterior): o Sepultura, que assinou com a gravadora holandesa Roadrunner e lançou os bem-sucedidos Beneath The Remains (1989) e Arise (1991). Pouco antes de lançar Arise, a banda foi atração do segundo Rock In Rio, realizado no Maracanã, que teve como grande estrelas Prince, Guns’n’Roses, George Michael, Faith No More e Judas Priest, e um escrete nacional do qual também fizeram parte Titãs, Engenheiros, Lobão (que abandonou o palco por ter sido hostilizado pelos fãs do Sepultura), Paulo Ricardo, Hanoi Hanoi, o folclórico roqueiro Sergei, Vid & Sangue Azul, Nenhum de Nós, Capital Inicial, Ed Motta e astros da MPB. No mesmo ano, surgiram, com a música Falar a Verdade, os cariocas do Cidade Negra: uma banda de reggae, o ritmo antecipado por Gil e pelos Paralamas, que daria o tom do pop na década.

Pretensões internacionais
Naquele ínicio de anos 90, aumentava significativamente a circulação de informações sobre música (em 1990, a MTV estreava no Brasil com fartura de videoclipes internacionais), mas não a vontade do Rock Brasil de inovar. O começo da década coincide com a febre dos grupos cover e dos que, em busca de uma chance no exterior (a exemplo do Sepultura), se limitam a cantar em inglês músicas de gêneros cristalizados no exterior, como o heavy metal (Viper, Dorsal Atlântica, Korzus), o rock ruidoso e melódico de inspiração inglesa (Beach Lizards, Second Come, Dash, Killing Chainsaw) e o punk (Anarchy Solid Sound). Exceção nessa seara foram os Ratos de Porão, cada vez mais populares no mercado underground cantando em (incompreensível) português. Mas nem mesmo eles resistiram à tentação, gravando em 1994 o LP Another Crime In Massacreland, recheado de músicas em inglês, mas com o clássico Suposicollor, que versa sobra as vias nada convencionais que certo ex-presidente era acusado de ter usado para consumir cocaína. As coisas começaram a mudar, porém em 1992, num processo que coincide com a renúncia de Collor em meio a denúncias de corrupção que levaram os estudantes a pintar os rostos e ir para as ruas em protestos.

Formado em Belo Horizonte em 1991, a banda de reggae Skank (que fazia bailes pela cidade, cantando algumas de suas músicas, todas em português), resolveu deixar de esperar por uma grande gravadora e entrou em estúdio para gravar, às próprias custas, o seu primeiro disco. Numa época em que essas produções independentes primavam pelo amadorismo ou pelo diletantismo, saiu em 1992 Skank, disco com alto grau de profissionalismo e grande apelo pop, que logo chamou a atenção da gravadora Sony, que o relançou sem mexer em nada da gravação. As músicas Indignação e O Homem Que Sabia Demais tiveram relativo sucesso em rádio em 1993, abrindo as portas para uma nova geração. Enquanto isso, em Recife, começava a se destacar uma cena, chamada de mangue beat, de bandas como Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A , que pegavam ritmos tradicionais como o maracatu e o misturavam com a música pop de vanguarda. Ainda em 1993, aparecia no Rio de Janeiro, com a música Tô Feliz, Matei o Presidente (dirigida a Collor), Gabriel o Pensador, garoto que transformaria o rap brasileiro em um gênero comercial.

Na mesma época, os Titãs vieram com a idéia de um selo, dentro da gravadora WEA, para gravar discos de bandas novas. Era o Banguela, que lançou o primeiro disco do Mundo Livre e o de uma banda de Brasília, que parecia a mistura do punk-rock dos americanos Ramones com o baião de duplo sentido, no estilo dos de Genival Lacerda. Graças a um exaustivo trabalho de shows, Raimundos (que saiu em 1994) furou o bloqueio das rádios com as músicas Puteiro em João Pessoa e Selim, bateu respeitáveis níveis de vendagem (mais de 100 mil cópias) e abriu o caminho para aquela que seria a mais popular banda de rock brasileiro dos anos 90. Outro peso pesado do rock que apareceu nesse meio dos anos 90 foi a banda carioca Planet Hemp, liderada por dois rappers (Marcelo D2 e BNegão), com o disco Usuário, polêmico por sua defesa da maconha. Junto com os Raimundos, eles forçaram a abertura das rádios para o rock mais pesado, com letras sobre sexo e drogas repletas de palavrões.

Recorde comercial
Na área do pop, porém, quem mostrou sua força comercial foi o Skank, que entrou 1995 com seu segundo disco, Calango, batendo a marca de 1,2 milhão de cópias vendidas, puxadas por uma fileira de sucessos: Te Ver, Jackie Tequila, Pacato Cidadão, Esmola, Amolação e a versão do sucesso de Roberto Carlos na Jovem Guarda É Proibido Fumar. Melhor ainda fez o disco O Samba Poconé, de 1996. Com o estrondoso sucesso da faixa Garota Nacional (que se estendeu para outros países do Mercosul) e o não tão grande de outras como É Uma Partida de Futebol, ele fechou com 1,8 milhão de cópias vendidas.

O recorde comercial dessa fase do Rock Brasil, porém, foi a do disco de estréia de uma banda formada por irreverentes e humildes jovens da cidade de Guarulhos, em São Paulo. Eram os Mamonas Assassinas, que conseguiram chamar a atenção de uma grande gravadora com músicas escrachadas como Vira, Vira, Pelados em Santos, Chopis Centis, Robocop Gay, Bois Don’t Cry, Sabão Crá Crá, que lembravam as sátiras de bandas como o Língua de Trapo e o cantor Falcão, e cresciam no palco e na TV graças ao histrionismo e o carisma do vocalista Dinho. Lançado em maio de 1995, Mamonas Assassinas logo ganhou o amor do público infantil (e o ódio dos pais), terminando por vender a impressionante quantidade de 2,6 milhões de discos. Mas, num lance trágico, os Mamonas também se tornaram recordistas em brevidade de carreira: em 2 de março de 1996, os cinco integrantes da banda morreram quando o avião onde viajavam se chocou com a Serra da Cantareira, em São Paulo.

Não seriam as únicas perdas que se abateriam sobre o Rock Brasil nos anos 90: em 1994, a persistente rádio rock Fluminense, mãe de boa parte das bandas dos 80, encerraria suas atividades. Em outubro de 1996, Renato Russo morreria de Aids, dias após a Legião lançar o triste álbum A Tempestade. Em novembro, o Circo Voador seria fechado, após a discussão de João Gordo, dos Ratos de Porão, com a comitiva do prefeito eleito do Rio de Janeiro, que chegava ao local para comemorar o resultado nas urnas. Em dezembro, o vocalista e guitarrista do Sepultura, Max Cavalera, deixaria a banda em seu auge, com o mundialmente aclamado disco Roots (1995), que misturou o mais cascudo thrash metal com as percussões baiana (de Carlinhos Brown) e indígena (dos Xavantes). A banda seguiu sem Max, que montou o projeto Soulfly – mas nenhum dos dois repetiu o êxito do Sepultura nos bons tempos. Por fim, no Carnaval de 1997, chegaria a vez de Chico Science morrer num acidente de carro, em Recife. Meses antes, a Nação Zumbi havia lançado sua obra-prima (o disco Afrociberdelia) e tinha feito até uma turnê européia ao lado dos Paralamas do Sucesso.

Os (a essa altura) veteranos nomes do Rock Brasil também brilharam com mais ou menos intensidade ao longo dos anos 90. Lulu Santos voltou ao grande sucesso, na fase dance dos LPs Assim Caminha a Humanidade (94) e Eu e Memê, Memê e Eu (1995, com o produtor Marcelo Memê Mansur). Mais bem-sucedido dos ex-integrantes da Blitz, Fernanda Abreu ressurgiu como uma espécie de primeira dama do funk-disco com os discos SLA Radical Dance Disco Club (1990), SLA – Be Sample (1992, do sucesso Rio 40 Graus) e Da Lata (1995, de sucessos como Veneno da Lata e Garota Sangue Bom). Quem também engatilhou uma bem-sucedida (mais artística do que comercialmente) carreira solo foi o ex-Titãs Arnaldo Antunes, que estreou com o LP Nomes (1994).

Depois de um disco de propostas mais experimentais, Severino (1994), os Paralamas retomaram o sucesso com o disco ao vivo Vamo Batê Lata (1995, que veio com quatro músicas inéditas de bônus). As vendagens também cresceram com outro ao vivo, o Acústico (1999). A revisão acústica dos sucessos de carreira foi um expediente também rendeu aos Titãs uma grande surpresa, em 1997: Acústico MTV foi o seu disco de melhor resultado comercial, vendendo mais de um milhão de cópias. A seqüência, Volume 2 (1998) e As Dez Mais (1999, só de versões) repetiram em parte o sucesso. Kid Abelha e Barão Vermelho também experimentaram uma volta às boas vendagens, respectivamente com os discos Meu Mundo Gira em Torno de Você e Álbum (este de versões), lançados em 1996.

A um passo da MPB
A aproximação feita por Chico Science e Raimundos com a música brasileira mais tradicional deu margem para que uma série de artistas na fronteira entre o pop-rock (a novidade sonora) e a MPB (a tradição, a qualidade das letras) chegassem à mídia: vieram os cariocas Paulinho Moska (ex-Inimigos do Rei, banda de rock que apareceu em 1989 e teve apenas dois sucessos: Uma Barata Chamada Kafka e Adelaide) e Pedro Luís (com sua banda de percussões, A Parede), o pernambucano Lenine, o paraibano Chico César e o maranhense Zeca Baleiro (do disco Vô Imbolá, de 1999). Minas Gerais, por sua vez, reforçava o pop com duas bandas de sucesso no fim dos 90: o Jota Quest (da música Fácil) e o Pato Fu, da doce vocalista Fernanda Takai, que só estourou a partir do quarto LP, Televisão de Cachorro (1998). A banda carioca Rappa (de fusão rock-reggae-funk-samba) também experimentou um grande crescimento, a partir do seu segundo disco, Rappa Mundi (1996), tornando-se sucesso de rádio e palcos graças a músicas como A Feira e a versão de Hey Joe. Uma grande surpresa, porém, veio de São Paulo: o rap de denúncia social dos Racionais MCs conquistou o país com a música Diário de um Detento e levou o LP Sobrevivendo no Inferno (1998) a vender mais de um milhão de cópias.

Os anos 90 terminaram com a ressurgência do rock na mídia, provocada pelo sucesso de bandas como a santista Charlie Brown Jr. e os Raimundos, dois dos maiores sucessos de vendagem de 1999, respectivamente com Preço Curto... Prazo Longo e Só No Forévis (uma inspirada crítica aos grupos de samba que vinham obtendo grande sucesso comercial com trabalhos artisticamente pífios). Outras bandas seguiram nesse vácuo, caso dos novatos Los Hermanos (que não saíram das rádios em 1999 com a música Anna Júlia), Penélope e Autoramas, e dos veteranos Ultraje a Rigor, Capital Inicial e Plebe Rude, que inesperadamente voltaram ao circo da mídia. Enquanto isso, Lobão corria por fora, lançando por seu próprio selo, Universo Paralelo, o elogiado disco A Vida é Doce, num esquema inédito de venda em bancas e na Internet.

http://cliquemusic.uol.com.br/br/Generos/Generos.asp?Nu_Materia=31