As chuteiras sem pátria
Quando chega um fax com barulhinho de cornetas celestiais, eu já sei: é carta do Nelson Rodrigues. Não deu outra. Nelson me pedia para publicar um texto sobre a Copa, já que está sem contato nas redações: “Eu sou do tempo do Pompeu de Souza, do Prudente de Morais Neto... Não conheço esses meninos da redação...” . Muito bem, aqui vai seu comentário sobre o sábado da desgraça:
“Amigos, a derrota é um grande momento de verdade. Só diante da vergonha é que entendemos nossa miséria. Num primeiro momento, queremos encontrar uma explicação para o fracasso, mas fracasso não se improvisa — é uma obra calculada, caprichada durante meses, anos até. Não adianta berrar no botequim que o Parreira é uma besta ou que o Ronaldo é um gordo perna-de-pau. Não. Nosso fracasso começou antes, porque esta seleção não foi a pátria de chuteiras, foram as chuteiras sem pátria.
Para nossos jogadores ricos e famosos, o Brasil é a vaga lembrança da infância pobre, humilhada. O país virou um passado para os plásticos negões falando alemão, francês, inglês, todos de brinco e com louras vertiginosas. Não são maus meninos, ingratos, não, mas neles está ausente a fome nacional, a ânsia dos vira-latas querendo a salvação. O povo todo estava de chuteiras, para esquecer os mensalões e os crimes, mas nossos craques não perderam quase nada com a derrota, tiveram apenas um mau momento entre milhões de dólares e chuteiras douradas pela Nike.
Isso me faz lembrar o grande Neném Prancha do Botafogo: ‘Temos de ir na bola como num prato de comida!...’ Que frase profunda, esquecida hoje... Nosso time come bem e nem os jogadores, nem os técnicos, nem os roupeiros e massagistas viram o óbvio, ali, uivando, ululando nos vestiários: o time estava sem conjunto, os jogadores estavam presos a um esquema tático que contrariava suas vocações. Só o povo berrava: ‘Ronaldo está gordo, Ronaldinho tem de atuar mais livre, os jovens têm de jogar mais!’. E quanto mais o óbvio se repetia, mais o Parreira se obstinava em sua lívida teimosia... Por quê? Porque o técnico é sempre contra a opinião geral. Em vez de orientar as vocações dos rapazes, ensinando-lhes a liberdade, a coragem e o improviso, o Parreira achou que todos têm de caber em sua estratégia. O pior cego é o surdo. E jogador brasileiro não gosta de lei nem de planejamentos, quer inventar sozinho. O técnico devia ser um reles treinador, quase um roupeiro, humilde diante dos craques. Mas o Parreira parecia um ‘Mussolini’ de capacete e penacho. Teve vários sinais de tirania: só dava a escalação no vestiário, com os jogadores desamparados, na insônia da dúvida da convocação, não teve coragem de barrar as estrelas, como se isso fosse uma afronta ao passado e às multinacionais. Ronaldo fez gols, tudo bem, mas foi uma âncora pesada desde o início, em torno do qual os problemas giraram. Parreira ficou com medo dos jovens, e eu via em seus rostos o desespero do banco. Robinho arfava de rancor e só entrava quando era tarde demais. Robinho foi o único que chorou no final, ainda menino e puro. Quem teve a mãe seqüestrada sabe o que é tragédia. E, para escândalo do país, Robinho ficou de castigo. Ao final de tudo, Parreira disse a frase suicida: ‘Não estávamos preparados para perder!...’ Isso é a morte súbita, isso é a guilhotina. Sem medo, ninguém ganha. Só o pavor ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para a revanche, só o pânico nos faz rezar e vencer, só Deus explica as vitórias esmagadoras, pois nenhum time vence sem a medalhinha no pescoço e sem ave-marias. Mas Parreira ignorou a divindade e acreditou em si mesmo, com a torva vaidade de uma prima-dona gagá, com pelancas e varizes.
Isso é o óbvio, mas foi ignorado. E quando o obvio é desprezado, ficamos expostos ao sobrenatural, ao mistério do destino. Por exemplo, por que começamos o jogo como um corpo de bailarinos eufóricos e, 15 minutos depois, ficamos paralíticos como sapos diante de cascavéis, com o Zidane dando chapéus até no Ronaldo? Será que diante da Marselha sofremos um pavor reverencial? Em 98, Ronaldo caiu em convulsões de cachorro atropelado no vestiário. E agora? Creio que no sábado não estávamos com medo da França, não, o que tivemos foi medo de nós mesmos, voltou-nos o complexo de vira-latas, inibidos como vassalos diante do Luís XIV, de sapato alto e peruca empoada. Foi assim em 98 e agora. A França é muito chique para filhos do Capão Redondo e de Bento Ribeiro.
Mas todos sabem que quem ganha e perde as partidas é a alma. E a nossa estava dividida entre o match e a linha de passe, entre o show e a vitória. Houve o episódio da meia do Roberto Carlos, que, um segundo antes do gol da França, estava ajeitando a liga como uma madame Pompadour. Pelé notou o descuido frívolo e trágico, pois guerreiro furioso não conserta a roupa na batalha. Esse pequeno gesto revelou bastidores de equívocos fatais, teorias e teimosias.
Outra coisa que nos matou foi a torcida. Nunca houve uma torcida tão desesperada por uns minutos de paraíso, de brilho. Foi diferente de 1950. Lá, sonhávamos com um futuro para o país. Agora, tentávamos limpar nosso presente. Explico: há um ano, somos uma nação de humilhados e ofendidos, debaixo da chuva de mentiras políticas, violência e crimes sem punição. Descobrimos que o país é dominado por ladrões de galinha, por batedores de carteira e pelos traficantes. Por isso, a população queria que o scratchfizesse tudo que o Lula não fez. Mas era peso demais para os rapazes. A dez mil quilômetros, os jogadores ouviam os gemidos ansiosos das multidões de verde e amarelo, como uma asma patriótica. Não esperávamos uma vitória, mas uma salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da zona brasileira, a seleção era nossa única chance de felicidade. Queríamos a taça para berrar ao mundo e a nós mesmos: ‘Viram? Nós brasileiros somos maravilhosos!’
Mas não deu. É só.”
Arnaldo Jabor
"Chiquérrimo" quer educar ricos e famosos
O livro de Glória Kalil é um manual de boas maneiras num tempo grosso
Li o livro de Glória Kalil, "Chiquérrimo", e meus olhos mudaram. Eu não sou chique, mas queria ver quem era. Botei uma bermuda amarela e saí por aí, levando uma "cachorra" pela mão, com ela se equilibrando em cima de um par de plataformas douradas, com a calça bem justinha de modo que sua bunda fosse uma espécie de terceira pessoa a nosso lado, a bundinha ali, atual jóia maior de qualquer mulher, entramos num restaurante metido a besta e resolvi mostrar que sou tão chic quanto aqueles babacas ali. Comecei dando logo um esporro no garçon que me ofereceu o menu e eu perguntei: "O que se come de bom por aqui?" E ele me disse com as narinas pálidas: "De tudo, senhor". "Ah, tem de tudo? Então me traz rã com bertalha!", berrei olhando para os lados, e vários senhores chiques desviaram os olhos, mas a minha "cachorra" riu bem alto, para alegria dos chics que puderam olhar sua bundinha mais calmamente. Aí, eu fiquei meio invocado e já iamos começar a discutir a relação, quando o meu celular tocou. Claro que era o Zé da Ilha que começou a me encher o saco e eu então berrei, para que todos ouvissem: "Dinheiro, meu filho, não me falta... graças a Deus, agora que vendi minha casa lotérica eu quero é ser chic!" Eu era o escândalo do restaurante. De propósito, pedi logo champagne e caviar e minha "cachorra" chegou a cantar a música do Zeca Pagodinho: “vocês sabem o que é caviar, nunca vi nem comi eu só ouço falar!”. Aí, eu fiquei olhando a turma ali daquele boteco chic. Quem disse que eles eram mais chiques do que eu? Eu nasci na "perifa" e continuo lá, mas dava para ver a caretice dos mauricinhos em volta.
Notei que ninguém prestava atenção em ninguém. Vi que o principal problema dos chics falsos é que eles não vêem ninguém a não ser eles mesmos, e como ninguém vê ninguém, era aquela solidão...
Saí pelas ruas, restaurantes, lojas, teatro, "lounges" e vi. Vi os sorrisos deslumbrados das botocudas (de Botox) entrando no bar fazendo bico com os lábios para realçar os "botoxinhos", triunfantes princesas de um império invísivel, acompanhadas de barrigas e bigodes, vi o rápido flash da gorgeta-quase-suborno de um gordo para lhe arranjarem a mesa da janela, vi o olho do garçon grato e envergonhado e vi sorrisos... Todo mundo sorrindo, bocas abertas, dentes, dentes, ninguém quieto, todos sorrindo para fotógrafos, vi os risos para esconder o medo e vi o medo por trás dos risos como uma epidemia de síndrome de pânico gargalhante, não vi a displicência chic que invejo nos fleugmáticos, só vi olhos buscando reconhecimento, vi a vaidade vicejando em cada rosto, ninguém via ninguém e todos eram vistos só por mim, vi as pernas douradas das peruas, cobertas de sedas e jóias, vi que o "ancien regime" continua vigente, que suas toalettes rococós são remotas lembranças de uma imaginária monarquia cafona, vi duquesas de lycra, baronesas de silicone, condessas pop com tatuagem na bunda e correntinha no tornozelo, todas competindo com as putinhas, vi que minha "cachorra" queria ser perua e as peruas queriam ser "cachorras", vi as cirurgias reparadoras, bigodes pintados, cabelos acaju, vi pochetes de dois mil dólares, bolsas de 3 mil, Vuittons falsas, Pradas fajutas, vi meias brancas em sapatos pretos e meias pretas vice-versa, vi verdes "fines herbes" entre dentes recém-capeados, vi zíperes de calças abertos, vi peitos para fora do soutien, sincronizados com gritinho de falso pudor, vi frases que nem eu, cafajeste de carteirinha, diria, vi um gordo falando que tinha trocado uma mulher de 50 por duas de 25, vi peitos abertos com colares de ouro em cascata, vi blazeres com brasão de almirantes, vi cabelos implantados como canteirinhos de piaçava, vi unhas grandes no dedo mindinho e vi a chegada das celebridades, invadindo as casas, os teatros, como trens barulhentos, gargalhando, luzindo sob os flashes e sempre furando filas, nariz para cima, os caninos brancos rindo para os fãs caninos, de caneta na mão com guardanapos úmidos pedindo autógrafos, vi o misto de desprezo com vaidade das celebridades dando autógrafos como bênçãos divinas, vi os casamentos de atrizes durarem duas semanas, entre duas edições de "Caras", vi roupas de onça, de zebrinha, de tigre e de dálmata, vi barrigas de cervejudos, vi garçons humilhados por banqueiros de cabelo sujo, vi metrossexuais querendo ser homossexuais sem ter coragem, vi maus-hálitos, excreções, rebotalhos, flatulências, eructações, babugens, oleosidade em caras tensas e a angústia aparecendo nos sovacos das camisas de seda, vi gargalhadas ocultando falências iminentes, vi corruptos sendo saudados como heróis nas churrascarias entre picanhas e chuletas e vi honestos sendo humilhados pelas esposas por pouco dinheiro, vi braceletes falsos, dentes falsos, risos falsos, bundas falsas, ricos falsos, vi casais se odiando diante do prato, vi caras amarradas, mulheres falando como crianças, ostentando fragilidades sedutoras, vi piadas de mau gosto com gargalhadas e perdigotos, vi bêbados caindo sobre bêbadas, vi paparazzientrando na porrada com câmeras quebradas, vi porteiros puxa-sacos com rostos transidos de rancor, vi jantares, óperas, coquetéis, comemorações oficiais, vi casamentos comandados por peruas de walkie-talkie, vi noites de gala, bailes, premiações.
Afinal pensei: o que é ser chiquérrimo? Na dúvida voltei para a "perifa", pro boteco do Zé da Ilha. Lá tem pagode, tem até crime, mas há uma educação pobre, uma delicadeza popular que não vi na cidade. Entendi o que Glória Kalil diz no livro dela: Chiquérrimo é aquele sujeito que respeita os outros, que valoriza a amizade, o amor, a beleza, que quer ser amado, mas não força a barra. Glória Kalil ensina em seus livros: equilíbrio, harmonia, um convívio respeitoso e feliz. Glória tem uma utopia: educar a burguesia. Não sei se consegue, mas seu livro nos ensina que, mal-empregada, até a elegância pode ser uma forma de violência
Arnaldo Jabor
O IDIOTA E A MOEDA - Arnaldo Jabor
O IDIOTA E A MOEDA
(Arnaldo Jabor)
(Arnaldo Jabor)
Conta-se que numa cidade do interior um grupo de pessoas se divertia com o idiota da aldeia. Um pobre coitado, de pouca inteligência, vivia de pequenos biscates e esmolas.
Diariamente eles chamavam o idiota ao bar onde se reuniam e ofereciam a ele a escolha entre duas moedas: uma grande de 400 RÉIS e outra menor de 2.000 RÉIS. Ele sempre escolhia a maior e menos valiosa, o que era motivo de risos para todos.
Certo dia, um dos membros do grupo chamou-o e lhe perguntou se ainda não havia percebido que a moeda maior valia menos.
- Eu sei, respondeu o tolo. "Ela vale cinco vezes menos, mas no dia que eu escolher a outra, a brincadeira acaba e não vou mais ganhar minha moeda”.
Podem-se tirar várias conclusões dessa pequena narrativa.
A primeira: Quem parece idiota, nem sempre é.
A segunda: Quais eram os verdadeiros idiotas da história?
A terceira: Se você for ganancioso, acaba estragando sua fonte de renda.
Mas a conclusão mais interessante é: A percepção de que podemos estar bem, mesmo quando os outros não têm uma boa opinião a nosso respeito.
Portanto, o que importa não é o que pensam de nós, mas sim, quem realmente somos.
O maior prazer de um homem inteligente é bancar o idiota diante de um idiota que banca o inteligente.
Preocupe-se mais com sua consciência do que com sua reputação.
Porque sua consciência é o que você é, e sua reputação é o que os outros pensam de você. E o que os outros pensam... é problema deles.
Obediência - Uma palavra aos jovens e adolescentes |
Tipo: Jovens libertos / Autor: Fernando de Oliveira |
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